O tempo do rio compreendido pela construção civil e por novas tecnologias

Por Juliane Frazão (PCT Guamá)

A Várzea Engenharia criou um projeto de palafita, feita de madeira biossintética, que acompanha as cheias dos rios

José Coelho Batista, fundador da Várzea Engenharia. Foto: Mácio Ferreira – Ag. Pará

Nascido em Belém e criado no município de Juriti, no Oeste do estado do Pará, às margens do rio Amazonas, José Coelho Batista, fundador da startup Várzea Engenharia, conhece de perto o problema que se propõe a resolver: na infância, a cada seis meses, tinha que abandonar sua casa por conta do período de enchente.

Enquanto cursava engenharia civil teve a ideia: por que não construir uma casa que se elevasse no período de cheia do rio? O estalo, que veio do anseio formado ainda na infância, aliado a diferentes aplicações tecnológicas, resultou no projeto Casa de Várzea, uma palafita (tipo de habitação construída sobre troncos ou pilares em regiões alagadiças) com sistema de elevação hidráulica natural que acompanha o movimento de enchentes dos rios, evitando o alagamento das moradias.

A construção é feita com madeira biossintética, produzida a partir da reciclagem de polietileno, um tipo de plástico usado largamente na indústria de embalagem. O material recebe um tratamento repelente, à base de andiroba, para afastar os mosquitos transmissores de doenças.

        Simulação de construção no período de cheia

O projeto prevê ainda a instalação de fossa séptica e biológica com sistema de filtro natural, permitindo tratamento e potabilidade da água; captação de energia fotovoltaica solar, através de placas na cobertura; e sistema de comunicação ad hoc.

“A gente colocava tudo num barco e ia embora pra cidade, mas o meu coração ficava lá. Foi pensando nesse cenário, ainda vivido por muitos ribeirinhos, que tive a ideia de agregar tecnologias ao projeto”, conta o empreendedor.

As possibilidades de construção são muitas: residências, escolas, postos de saúde, clubes, restaurantes, hotéis, igrejas, centro paroquiais, parques infantis e até projetos menores como decks e móveis de piscinas.

Do audiovisual para a construção civil

José trabalhou por 28 anos no setor audiovisual como repórter cinematográfico e editor de TV e documentação. . A mudança de campo profissional veio em 2016 quando, em busca de novos desafios, sentiu a necessidade de mudar.

“Um dia, enquanto estava no computador, surgiu a propaganda de um curso de Engenharia Civil. Cliquei, me inscrevi no vestibular e passei. No primeiro dia de aula, durante a disciplina de metodologia científica, o professor pediu que cada aluno escolhesse um objeto de estudo e deu a orientação que tivesse algo a ver com sustentabilidade. Lembro que peguei a caneta, o caderno, baixei a cabeça e escrevi todo o projeto Casa de Várzea, direto. A casa de elevação hidráulica veio naturalmente porque foi o que vivi. Estava ali no subconsciente”, conta.

Pouco depois de ter começado a nova graduação, se tornou residente no Parque de Ciência e Tecnologia Guamá. “Lembro que subi na sacada, vi todo aquele verde e pensei: estou dentro de um Parque de Ciência e Tecnologia, tenho que apresentar o meu projeto”, disse o empreendedor.

Formatou, submeteu e aprovou a proposta para tornar a Casa de Várzea uma startup residente no coworking do Parque. O projeto foi ganhando corpo e José conversou com alguns pesquisadores do Parque, mais especificamente com a equipe do Núcleo de P&D em Telecomunicações, Automação e Eletrônica (LASSE), e incorporou tecnologias, como o sistema de comunicação via rede ad hoc, uma tecnologia de rede sem fio que dispensa o uso de um ponto de acesso comum aos computadores conectados a ela, de modo que todos os dispositivos da rede funcionam como se fossem um roteador, encaminhando comunitariamente informações que vêm de dispositivos vizinhos.

Acácio Canto, engenheiro civil e sócio da Várzea Engenharia

Para conseguir dar conta das diferentes frentes, decidiu chamar um sócio para fortalecer o projeto, foi quando o amigo e engenheiro civil Acácio Canto passou a fazer parte da trajetória da Várzea Engenharia. O sócio trouxe conhecimentos e contatos. “Começamos uma articulação intensa com governos e instituições. Sensibilizando principalmente o governador Helder Barbalho, por intermédio da Secretaria de Educação (Seduc) e a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Educação Profissional e Tecnológica (Sectet). A partir disso a startup ampliou o escopo, antes fechado apenas em residências”.

A startup cresceu, saiu do espaço de coworking, passou para um módulo de 36 m² e hoje ocupa um módulo de 100 m², que abriga a equipe formada por dois engenheiros civis, três doutores em áreas relacionadas ao projeto, um economista, mais uma equipe volante que dará apoio ao desenvolvimento dos projetos piloto.

Impacto socioambiental

A proposta de trabalho da startup se alinha aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), definidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) durante a Cúpula de Desenvolvimento Sustentátevel, realizada em 2015.

Dos 17 objetivos da agenda, os impactos promovidos pela Várzea Engenharia contribuem para o desenvolvimento de pelos menos quatro: saúde e bem-estar; água potável e saneamento; energia limpa e acessível; cidades e comunidades sustentáveis.

Segundo pesquisa da Organização Não Governamental (ONG) World Resources Institures (WRI), as enchentes prejudicam mais de 20 milhões de pessoas em todo o mundo, gerando um custo de R$ 96 bilhões de dólares por ano. Dados da pesquisa apontam que 80% da população mundial afetada anualmente por inundações está concentrada em apenas 15 países e o Brasil é o 11º do ranking. “Acreditamos que a tecnologia vai impactar positivamente a vida de mais de 1 milhão de pessoas, só aqui na região Amazônica”, ressalta o empreendedor.

Em um futuro próximo, a startup planeja construir uma fábrica, na área do parque tecnológico, em Belém, para produzir a madeira biossintética. “Com a construção da unidade fabril, além de empregar mão de obra local, temos a previsão de reciclar aproximadamente 20% do volume de plástico descartado na região metropolitana de Belém. A ideia é estimular a cadeia de reciclagem desse material, tornando, inclusive, o plástico uma moeda de troca para o pagamento da casa”, explica.

Atuação em rede

Uma das vantagens de estar inserido em um Parque de Ciência e Tecnologia é a interface com diferentes atores do ecossistema de inovação. A residência no PCT Guamá possibilitou uma maior proximidade com a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que tem seu escritório regional norte instalado no Parque. “Estamos fazendo proposta para participar de alguns editais da financiadora. Estar aqui dentro, sob a chancela do PCT Guamá, nos confere competitividade neste sentido”.

A startup tem parceria ainda com Fundação Guamá, gestora do PCT Guamá, a BioTec Amazônia, fundação também residente no parque; com a startup Ver-o-Fruto, para a implantação de filtros feitos a partir de carvão ativado; com a Ecoset, empresa de consultoria que trabalha na área ambiental; com a Vigha, que trabalha sistema de gerenciamento de obras; com a Like, responsável pelo suporte na comunicação; e com o Instituto My Amazon, que dará apoio no network e captação de recurso.

Próximos passos

Segundo o empresário, a perspectiva é que ainda este ano sejam implantadas duas escolas utilizando o modelo de tecnologia da startup: uma de 500 m², situada em Abaetetuba e gerenciada pela Seduc, e uma escola técnica de pesca, cuja localidade ainda será definida, administrada pela Sectet.

 

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