Estudos na área da citogenética testam substâncias favoráveis à saúde, analisando também o quão tóxicas elas podem ser para um organismo, inclusive com fins comerciais. E ajudam a entender que a biodiversidade amazônica é ainda mais diversa do que se imagina
Por Brenda Taketa
Criação de arte: Paulo Faro
Belém, 27 de setembro de 2019 – Criado em fevereiro de 2018, o primeiro Centro de Estudos da Biodiversidade (CEABIO) da Região Norte localiza-se no Parque de Ciência e Tecnologia (PCT) Guamá. Vinculado à Universidade Federal do Pará (UFPA), é um dos empreendimentos residentes do parque tecnológico e reúne diferentes laboratórios, ofertando serviços para empresas e organizações interessadas em informações e pesquisas qualificadas sobre a riqueza biológica da região.
Um desses laboratórios é o de Citogenética, coordenado por Julio Cesar Pieczarka, professor da UFPA desde 1983, com a colaboração de mais duas professoras, Cleusa Nagamachi e Renata Noronha, além de uma rede de convênios com universidades e institutos científicos nacionais e internacionais.
Com pesquisas que avaliam desde o efeito de substâncias contidas em medicamentos populares sobre a saúde de organismos até o conhecimento molecular da biodiversidade, que possibilita a identificação de novas espécies, o laboratório articula atualmente quatro linhas de pesquisa: citogenômica da biodiversidade amazônica; citotoxicidade e genotoxicidade; citogenômica de vertebrados aquáticos e cultura celular.
“É muito importante, no contexto amazônico, estudarmos o princípio ativo das plantas, da biodiversidade, os seus usos. Diante de um cenário global em que as substâncias sintéticas também estão se esgotando, os interesses se voltam cada vez mais para a biodiversidade, para as moléculas que já vêm prontas na natureza”, explica Julio, pesquisador na área de Genética Animal e Biologia Celular, que coordena também o CEABIO.
Segundo ele, na medida em que, na Amazônia, a riqueza biológica associada às florestas é muito alta e aumentam as perdas decorrentes da destruição dos ecossistemas por desmatamento ou queimadas, a importância de se investir em ciência e tecnologia, assim como de integrar os grupos de pesquisa em redes mais amplas, a fim de aprofundar o conhecimento sobre essa biodiversidade, é cada vez mais urgente e indispensável.
Eficácia de medicamentos populares e substâncias anticancerígenas analisadas em laboratório
Atualmente, o Laboratório de Citogenética é capaz de atender a vários tipos de demandas de empresas (industriais ou de serviços) que têm a biodiversidade e o conhecimento genético como diferenciais de produção. As aplicações práticas das pesquisas científicas foram também descobertas resultantes da experimentação e aprendizagem em laboratório, segundo contam os estudiosos.
“Na realidade, no nosso laboratório, nós começamos com ciência básica, com o objetivo de estudar e conhecer de forma aprofundada a biodiversidade, inicialmente sem aplicações diretas, ciência pura mesmo. Com o passar dos anos, a gente desenvolveu certas técnicas para fazer esse trabalho e percebemos que poderia haver aplicações práticas nessa abordagem, como a parte do estudo de toxicidade celular”, conta Julio.
Ele explica que, a partir de estudos sobre a poluição de rios, feitos em parceria com uma especialista da área da Química, então responsável pela avaliação da qualidade da água, foi possível investigar as alterações genéticas provocadas nos peixes por contaminação.
“Com o tempo a gente seguiu também por outra linha, a de estudar a toxicidade do princípio ativos de plantas usadas na medicina popular, sempre com um trabalho associado a outras pessoas e redes”, aponta.
Hoje, a pesquisa sobre os efeitos das plantas diretamente nas culturas celulares permite a compreensão dos benefícios que elas podem ou não causar sobre o organismo humano, assim como as dosagens e as frequências adequadas para o uso.
Grosso modo, as culturas celulares envolvem um conjunto de técnicas que isolam células de animais ou vegetais em recipientes plásticos em condições de assepsia, assegurando que elas se mantenham, cresçam e proliferem em ambientes artificialmente controlados. O objetivo disso é estudar as propriedades, atividades, diferenciações e proliferações dessas células, entendendo desse modo um pouco mais sobre o funcionamento de um organismo.
Esse tipo de conhecimento é fundamental em uma economia baseada em produtos oriundos da biodiversidade, sejam medicamentos, perfumes, cosméticos ou alimentos funcionais, por exemplo. As substâncias analisadas podem ser extraídas de frutos, como o açaí e o taperebá; de óleos, como o oriundo da andiroba e da copaíba; e sementes, como as de abóbora, entre os inúmeros exemplos.
Efeitos e dosagens corretas – “Toda substância amplamente consumida ou comercializada precisa ser testada antes do uso, porque tudo que for em excesso sempre vai fazer mal. Então, a pesquisa envolve determinar primeiro qual é a dose que faz mal, definida como a que mata 50% das células. Aí, estudando teores abaixo dessa dose, é possível entender quais efeitos [dessa substância pesquisada] podem ser benéficos ou não para os organismos”, explica Cleusa Nagamachi, cientista também especializada na área de Genética Animal.
Nos estudos das plantas usadas popularmente como medicamentos ou por oferecerem supostos benefícios à saúde, também são investigadas a presença de antioxidantes, substâncias que combatem os radicais livres e os efeitos que eles podem ter sobre células de câncer. Conhecidos como “inimigos da saúde”, os radicais livres são moléculas responsáveis pelo envelhecimento celular e por causarem diversos problemas como doenças degenerativas.
“A gente testa cada substância pesquisada muitas vezes: por exemplo, em uma célula de câncer de estômago e em uma célula de estômago normal. Ao testar nas duas, podemos ver se ela vai ter mais efeitos sobre as células de câncer, se pode ter alguma função anticâncer ou se ela provoca algum dano na célula normal também, porque às vezes uma substância pode até combater a doença mas é tão tóxica que acaba provocando problemas para a pessoa também, então é importante ter uma ideia sobre isso”, explica Julio.
“Nesse caso, quando você vai usar célula de câncer, vamos averiguar a substância com capacidade de reduzir a proliferação celular, porque o câncer se dá em decorrência de células que perderam o controle da divisão celular e se dividem indefinidamente. Se você consegue uma substância que reduz essa proliferação desenfreada, é possível ter um controle sobre o câncer. Para isso é preciso saber também a dose ideal”, completa Cleusa.
Banco de células – O laboratório de Citogenética conta ainda com um banco de células, certificado para receber e conservar amostras de germoplasmas. Essas amostras possibilitam a pesquisa de substâncias de interesse biotecnológico e mesmo a clonagem de células para a reprodução dessas substâncias ou de determinadas espécies no futuro.
Segundo os especialistas, por serem criados a partir de cultura celular, esses bancos são fundamentais para garantir a diversidade genética das populações de plantas e animais, ficando disponíveis para testes de novas técnicas e mesmo para a recuperação da biodiversidade perdida pela eventual extinção das populações naturais.
Análises citogenômicas demonstram que biodiversidade é ainda mais diversa do que se imaginava
Grosso modo, o núcleo de cada célula abriga cromossomos, estruturas formadas por DNA e proteínas, portadores de informações genéticas de cada indivíduo.
Os estudos sobre esse conjunto de informações em espécies de peixes, aves, morcegos, roedores e marsupiais, grupos dos quais as mucuras, as catitas e os gambás fazem parte, por exemplo, têm ajudado os especialistas do Laboratório de Citogenética a compreenderem que a biodiversidade amazônica é ainda mais diversa do que se imaginava.
A análise do cariótipo (total de cromossomos de uma espécie), por exemplo, ajuda os especialistas a identificarem cada uma dessas espécies com mais exatidão. Cleusa Nagamachi explica que, recentemente, essas pesquisas ajudaram a reconhecer uma espécie de roedor do gênero Cerradomys, anteriormente encontrada apenas em outro bioma, o Cerrado.
“Teoricamente, Cerradomys ocorre no Cerrado, mas a gente encontrou aqui na Amazônia. E isso pode ser efeito, por exemplo, do desmatamento, de mudanças no ambiente. De repente, os animais estão entrando, invadindo outros ecossistemas porque o desmatamento está deslocando o habitat deles. Uma das explicações seria essa”, argumenta.
Além de ajudar a entender as mudanças ecológicas decorrentes das pressões ambientais, as pesquisas citogenômicas favorecem a compreensão dos processos de formação de novas espécies ou de mutações capazes de fazê-las adoecer após a exposição a substâncias tóxicas, despejadas nos ecossistemas por empresas ou fábricas, por exemplo.
“Em condições normais, a mutação cromossômica ocorre ao acaso, assim como a mutação gênica. Por exemplo, se você pegar duas pessoas, por mais que sejam irmãs ou da mesma família, elas vão ter formas gênicas diferentes. Assim como as populações [animais] podem ter formas cromossômicas diferentes e essas formas cromossômicas, ao se fixarem na população, formarem um novo indivíduo, o homozigoto, dando origem a uma nova espécie. Isso pode acontecer espontaneamente, como qualquer mutação gênica, mas diante de um meio ambiente poluído, teremos um aumento na taxa de mutações deletérias, causando problemas aos indivíduos”, detalha.
Ela explica que a diferenciação cromossômica que leva ao surgimento de uma nova espécie é parte da dinâmica biológica e pressupõe que essa nova espécie será apta a sobreviver, a permanecer fértil e a gerar descendentes. Mas, quando os organismos são expostos a agentes tóxicos, como agrotóxicos, ou mudanças ambientais drásticas, as mutações podem causar doenças, como o câncer.
“Agora nós vamos enfrentar um problema sério associado ao meio ambiente, que está sendo muito poluído. A gente já está detectando isso, às vezes encontrando peixes com má formação, com problemas, o cariótipo alterado. E quando você vai analisar a água daquele rio, ela está seriamente contaminada”, alerta.
Espécies crípticas – Em alguns casos, a pesquisa mais aprofundada em laboratório ajuda diferenciar o que a olho nu não se percebe. Ao trabalharem em parceria com taxonomistas, especialistas que analisam a morfologia das espécies de animais, os geneticistas ajudam a distinguir espécies aparentemente iguais. Esses são o caso das espécies crípticas, caracterizadas por serem fisicamente idênticas, mas, nos níveis molecular ou cromossômico, muito diferentes e não intercruzantes.
“Nós temos exemplo de roedores aparentemente da mesma espécie, mas com duas populações: uma com cariótipos com 24 (fêmea) ou 25 (macho) cromossomos e outra população com 16 (fêmea) e 17 (macho). Morfologicamente, o taxonomista não consegue diferenciar, mas eles não são da mesma espécie, o cariótipo é muito diferente”, exemplifica Cleusa.
Outro exemplo dado pela cientista foi um trabalho com um peixe elétrico do gênero Gymnotus. Por meio dessa pesquisa, descobriu-se que um exemplar coletado em Belém possuía 42 cromossomos e outro, em Almeirim, apenas 40, sendo, portanto, um caso de espécie críptica.
“Isso quer dizer, sim, que há na Amazônia muito mais espécies do que a gente olha e diz, porque a separação foi muito recente e não deu tempo de acumular diferenças”, assegura.
Estudos genéticos sobre os vertebrados aquáticos também possuem grande importância para a conservação da biodiversidade regional. Planos de manejo e ações de recuperação ambiental podem ser construídos com base em informações sobre o status genético de espécies ameaçadas, como o peixe-boi e a tartaruga da Amazônia, animais que sofrem grandes impactos da ação humana predatória sobre o meio ambiente.
“A Citogenômica da Conservação é essencial para avaliar a estabilidade cromossômica dessas espécies. Além disso, a análise por biotécnicas integradas, como a epigenômica, podem revelar como os genes funcionais podem estar sendo impactados pela redução populacional”, explica a cientista Renata Noronha, que também integra o Laboratório de Citogenética.
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Confira o resumo da matéria:
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Clique nas referências bibliográficas e leia os artigos associados aos temas abordados nessa matéria.
- Sobre espécies crípticas (espécies morfologicamente similares):
ROSA, C.C. Genetic and morphological variability in South American rodent Oecomys (Sigmodontinae, Rodentia): evidence for a complex of species. Journal of Genetics. December 2012, Volume 91, Issue 3, pp 265–277. 2012.RODRIGUES DA COSTA M. J. et.al. Cryptic Species in Proechimys goeldii (Rodentia, Echimyidae)? A Case of Molecular and Chromosomal Differentiation in Allopatric Populations Logo Cytogenetic and Genome Research. 148:199-210; 2016.
- Sobre espécies supostamente não encontradas na Amazônia:
- Sobre novas espécies na Amazônia:
- Sobre evolução e filogenia de morcegos sulamericanos:
- Sobre citotoxicidade de princípios ativos de plantas da Amazônia: